by Glòria Paiva
Para os Yanomami, povos indígenas que habitam a Amazônia entre as fronteiras norte do Brasil e sul da Venezuela há pelo menos 1.000 anos, a água representa mais do que um meio de sobrevivência: é a origem da vida. Segundo um de seus mitos fundadores, a primeira mulher da Terra veio das águas de um rio. Thuëyoma, peixe em forma humana, foi pescada por Omama e deu à luz o primeiro ancestral dos yanomami, segundo relata o xamã Davi Kopenawa Yanomani no documentário “A última floresta” (2001). Ao longo de sua existência, os indígenas daquela região, um povo de caçadores e agricultures, construíram seu modo de vida de forma completamente integrada às abundantes águas fluviais.
No mito relatado por Davi Kopenawa, o irmão de Omama, Yoasi, violenta Thuëyoma e é expulso da terra, gerando assim a morte e todos os males que afligem os homens. Yoasi vai habitar a outra margem do rio: a mesma margem onde estão os homens brancos, que ao longo dos séculos trouxeram morte e doenças para as comunidades originárias. Naquelas mesmas águas está também o ouro, tão cobiçado pelos garimpeiros, que tiveram, nos últimos quatro anos, o aval do governo de Jair Bolsonaro para atuar de forma livre e ilegal em reservas indígenas protegidas, como o Território Yanomami, onde hoje vivem cerca de 30 mil pessoas.
A descoberta de jazidas de ouro nas terras Yanomami, em 1986, levou à invasão de 45 mil garimpeiros e a morte de cerca de 1.700 indígenas. Em 1992, a demarcação do território, que garante ao indígena o direito à terra, deu respaldo a ações do governo para retirar cerca de 40 mil invasores do local. Porém, 30 anos depois, o problema voltou. No mês passado, diversas denúncias falavam sobre a presença de 20mil a 30mil garimpeiros ilegais instalados naquela que é a maior reserva indígena do país.
Vale lembrar, inclusive, que Bruno Pereira, indigenista da Funai que atuava como coordenador dos povos indígenas isolados, foi exonerado da sua função em 2019 por agir exatamente contra o garimpo ilegal na terra yanomami e outros territórios. Pereira, junto ao jornalista do The Guardian, Dom Phillips, foi assassinado três anos depois no Vale do Javari.
O mercúrio utilizado na atividade do garimpo para ajudar o localizar o ouro é jogado nos rios, contaminando a água e o ar. O metal pesado provoca uma série de doenças, mas é apenas um dos fatores na origem da tragédia humanitária dos yanomami. Destruição ambiental, propagação de doenças infecciosas, insegurança alimentar, falta de acesso a água potável, exploração sexual em troca de alimentos e armas de fogo, trabalho escravo, mortes, estupros e outras violências também têm sido denunciadas por indigenistas, xamãs e organizações como a Hutukara Associação Yanomami.
Sobrevivência ameaçada
Segundo o Ministério da Saúde, somente em 2022, cerca de 40% da população yanomami teve diagnóstico de malária, cujo mosquito transmissor se reproduz nas águas das piscinas residuais deixadas pela atividade garimpeira. No ano passado, 99 crianças morreram por desnutrição, pneumonia, diarreia e contaminação por mercúrio. Um terço das crianças yanomami e mais de 50% da população tem quadros de desnutrição grave. Em quatro anos, o número de crianças mortas na comunidade teria chegado a pelo menos 570, um número subestimado, segundo a ministra Sônia Guajajara, devido à ausência de estatísticas e de controle por parte das autoridades sanitárias nos últimos anos.
“Essa é a pior situação humanitária que já viu”, descreveu André Siqueira, médico infectologista e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Em janeiro, Siqueira foi, junto a outros especialistas, à região em uma missão do Ministério da Saúde. Também viajaram à terra indígena o presidente Lula e a ministra Sônia Guajajara. O que as autoridades encontraram levaram o governo a declarar estado de emergência em saúde pública no território. Nos últimos dias, o Governo Federal bloqueou o espaço aéreo para inibir a chegada de insumos aos invasores e cerca de 300 deles já deixaram as terras indígenas ianomâmi a pé ou pelo rio.
André Siqueira contou que a situação dos yanomamis começou a se agravar nos últimos anos com a junção de diversos fatores: a presença do garimpo ilegal, a falta de assistência sanitária adequada devido à ausência de profissionais e uma completa desestruturação dos programas públicos de proteção às terras indígenas. “Em alguns lugares os postos de saúde foram desmobilizados por questões de segurança, quando seus funcionários se viram ameaçados por garimpeiros”, explica.
O secretário de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, Ricardo Weibe Tapeba, disse que há fortes indícios de desvio de verbas que deveriam ter sido investidas em assistência ao povo indígena. O governo federal já começou a enviar equipes médicas e prometeu ampliar a capacidade da pista de pouso local para facilitar o seu acesso, já que muitas das 371 comunidades são quase isoladas e de difícil acesso. Mais de mil indígenas em graves condições de saúde foram socorridos nas últimas semanas.
Segundo o advogado e ex-indigenista da Fundação Nacional do Índio (Funai), Ricardo Rao, atualmente exilado na Itália, a gestão de Jair Bolsonaro deu via livre à exploração de garimpeiros na região, com o desmonte deliberado das frentes de proteção da Funai. “A invasão dos garimpeiros na região tem a anuência e o apoio direto do governo de Roraima e dos grupos bolsonaristas. É impossível chegar ao território Yanomami sem ser detectado pelos batalhões do Exército que existem lá”, denuncia.
A ministra Sônia Guajajara afirmou, durante sua visita à região, que a gestão de Bolsonaro deve ser responsabilizada pela crise. “Permitiram que essa situação se agravasse ao ponto de vermos adultos com peso de criança e crianças em pele e osso”, disse. As atividades dos garimpeiros e o agreavamento das condições de saúde no território foram denunciadas diversas vezes por associações, jornalistas e órgãos públicos nos últimos anos. Organizações indígenas afirmam, no entanto, que a gestão de Bolsonaro se negou a adotar medidas urgentes para contornar a situação. A Polícia Federal agora investiga se houve crime de genocídio e omissão de socorro por parte do governo federal no caso.
Na cosmovisão yanomami, “urihi”, a natureza, é toda a terra e toda floresta, a “terra-floresta”, uma entidade viva inseparável da raça humana. O xamã Davi Kopenawa Yanomami já havia profetizado, 24 anos atrás, em entrevista ao antropólogo francês Bruce Albert, que “urihi” estava ameçada pela destruição dos brancos. “Omama escondeu os minérios debaixo da terra para ninguém mexer. Os riachos sumirão, a terra ficará friável, as árvores secarão e as pedras racharão com o calor. Os espíritos xapiripë, que nos protegem, vão fugir e todos morrerão”, havia dito o xamã. Agora, a presença do Estado será uma condição sine qua non para que os filhos e filhas de Omama recuperem sua saúde e seu modo de vida, um patrimônio imaterial brasileiro que corre o risco de desaparecer.
Originalmente publicado no site “La Bottega del Barbieri” em 30 de janeiro de 2023
Glória Paiva is an Italian-Brazilian journalist, translator and communication expert.
She has lived in Brazil, in Spain and, since 2016, in Italy where has interviewed various personalities and written numerous articles on the topics of human rights, international politics, literature, feminism and migration. Author of the book “Con vistas al Tibidabo” (PublishWay España, 2020), a reportage novel in Spanish based on the life of three writers who emigrated to Barcelona. In Italy, now she writes for the newspaper “il manifesto” and on the “Pagine Esteri” portal and collaborates with the Public Prosecutor’s Office as interpreter and translator.
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